Tornando-se judeus no Brasil: Um prefácio

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Por Sarah Leiter
Kulanu Magazine, Outono de 2018
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Na última década, um número crescente de brasileiros está mudando para o judaísmo saindo de várias  enominações do cristianismo. Esperando descobrir o porque, eu viajei dos Estados Unidos para o Brasil em maio deste ano para encontrar alguns desses novos judeus.

Depois de não conseguir visitar duas comunidades emergentes que estão desmoronadas sem apoio institucional judaico, eu fui para Brasília, a capital do país. Lá, uma comunidade de quase vinte pessoas praticando judaísmo me recebeu imediatamente como um membro da família.

Por várias semanas, eles me hospedaram na sinagoga deles, um edifício de três andares no centro da cidade. Eles me proporcionaram inúmeras refeições, todos vegetarianos por causa das minhas próprias preferências alimentares e, também, porque a carne casher, o único tipo que eles comem, geralmente esta indisponível. Eu os ouvi substituir o “obrigado” ocasional com um “todah” hebraico, aprendido com o israelense que eles empregam para lhes ensinar hebraico conversacional toda semana. Eu vi como eles buscaram interpretações rabínicas nos smartphones deles e escutei como eles tocaram melodias litúrgicas nos carros. E cada Shabat, eu cantei com eles enquanto eles enchiam o edifício da sinagoga com harmonias hebraicas reminiscentes da minha infância numa comunidade judaica na Califórnia.

Eu vim para esta comunidade como uma estudante de doutorado em antropologia. Um objetivo da antropologia é dar mais oportunidades às vozes a serem ouvidas, adicionar nuança e compreensão às várias maneiras que vivemos como humanos. O objetivo é escutar.

Um dia em Brasília, almoçando ao lado do lago, eu perguntei para um membro da comunidade sobre o que ele pensava que um artigo sobre eles deveria incluir. A resposta dele: “só conte nossas histórias.”

 

Rodrigo e Sophia

A primeira vez que eu vi Rodrigo, de 34 anos, e Sophia, de 30 anos, eles estavam tirando os capacetes de moto e pedindo um Uber para um restaurante vegano. O casal era relativamente novo na comunidade; eles se conhecerem num aplicativo de namoro só um ano atrás e celebraram o casamento deles cinco meses depois disso. Sophia, uma farmacêutica, aprendeu inglês sozinha e viaja frequentemente. Rodrigo, que trabalha com tecnologia da informação, tem uma afinidade para misticismo judaico e as interseções entre histórias judaicas e brasileiras.

Apesar dos recém-casados terem vindo de bases cristão e espiritualista, eles tinham mudado para o judaísmo no momento em que eles se casaram. Apesar deles ainda não conseguiram se converter, a cerimônia de casamento deles incluiu vários elementos simbólicos que celebram o judaísmo deles.

Desde o casamento, eles têm participado nos serviços de Shabat na sinagoga toda semana, aprendido hebraico conversacional com o resto da comunidade, e conduzido a Havdallah com uma vela trazida duma viagem para Tsfat. Se você escutasse com atenção, talvez você ouça Rodrigo dizendo “baruch hashem” alguns vezes nas conversações.

Apesar do acesso limitado deles para instituições judaicas oficiais no Brasil, Rodrigo, em particular, fica ansioso para passar pelo processo de conversão. Ele me perguntou se eu poderia apresentá-lo aos rabinos americanos que sejam dispostos ajudar estrangeiros, como ele tinha pouca esperança que a conversão dele seria suportada pelos rabinos no Brasil. A história sobre como ele e sua esposa se tornaram judeus, como as histórias de todos os outros na comunidade, deve ser continuada.

Isaac

Isaac, de dezesseis anos, foi introduzido para a comunidade pelo irmão mais velho dele quando a família ainda era cristã. Um adolescente jovem naquela época, Isaac começou a pesquisar o judaísmo sozinho. Ele começou a estudar hebraico porque, como ele me disse, “o judaísmo não existe sem hebraico—a Torah é em hebraico.” Numa outra conversação, quando eu pedi a ele o significado de uma palavra em português, ele a traduziu para hebraico porque foi mais fácil lembrar do que o inglês.

Uma tarde, enquanto esperando juntos o pai dele chegar, Isaac me disse que os colegas de escola dele pensavam que ele é estranho. Não foi legal, ele confessou através do riso, de ler constantemente sobre judaísmo, história e políticas mundiais, mas ele gostava de fazer isso de qualquer maneira—mesmo se tornando a única pessoa judia na escola lhe deu um novo apelido, “judeu.”

Hoje em dia, Isaac geralmente é o único membro da família na sinagoga cada Shabat. Ele mesmo dorme em um colchão extra no edifício quando ele não acha uma carona para casa e volta entre os serviços de sexta-feira e sábado.

Apesar dele nunca ter viajado de avião, Isaac sonha em um dia embarcar um voo para Israel e servir nas Forças de Defesa de Israel. Ele quer participar numa viagem de “Birthright” quando ele for mais velho também. Mas primeiro, ele espera se converter.

Alice e Sean

Um domingo numa igreja brasileira, Sean, o filho dum pastor evangélico, percebeu uma menina com cabelo loiro encaracolado. Ele se aproximou por ela com uma linha de pick-up corajoso: “quando nos casaremos?”

Aquele domingo foi mais de 25 anos atrás. Hoje em dia, Sean e Alice, a menina com os cachos loiros, são casados e têm três filhas adolescentes. Sean é o presidente da sinagoga que eu visitei em Brasília.

A jornada deles para o judaísmo, eles me explicaram, envolveu vários ciclos de interrogação, de educação, de desconstrução, e de reconstrução. Ela começou quase uma década atrás numa igreja protestante, onde Alice costumava virar para o marido dela com descrença no que o pastor estava pregando; discordou em como eles viam o mundo. Logo, a família parou de frequentar a igreja e se distanciou do cristianismo ao todo. Por quase cinco anos, eles ficaram não afiliados com nenhuma religião. Então, através do que a irmão de Alice encontrou na internet, eles descobriram o judaísmo.

Para eles, o que eles aprenderam só faz sentido. As ênfases judaicas em estudar, em ser amável para os outros, e em seguir mandamentos que forneceriam uma estrutura prática para uma boa vida os atraíram. Então, eles começaram a procurar sinagogas locais para visitar.

Visitar as sinagogas provou ser mais difícil que eles haviam imaginado; a maioria simplesmente eram fechadas para visitantes que não eram judeus. Finalmente, a Alice e o Sean encontraram uma que era excepcionalmente acolhedora—e logo eles perceberam que foi uma congregação messiânica.

Sentindo “enganados,” eles rapidamente saíram do grupo messiânico e eles mergulharam em uma prática estrita de judaísmo ortodoxo. Eles encontraram outros como eles, outros que queriam ser judeus mas não tinham congregação com a qual aprender, e contrataram um rabino ortodoxo como professor. Eles fizeram tudo exatamente como o rabino os ensinou; Alice começou a se vestir modestamente nas saias longas, e Sean começou a se preparar para o hatafat dam brit que ele acabaria por passar sob a supervisão de um homem que alegou ser rabino.

Eventualmente, o casal decidiu que o aprendizado judaico foi mais importante para eles do que seguindo as tradições “corretamente.” Ao lado do resto da comunidade, eles mudaram para o judaísmo reformista. A filha mais velha deles se tornou a chazan da comunidade.

Eu perguntei para Alice se ela pensa que a prática religiosa deles pode mudar novamente no futuro, porque a família dela passou por tantas interações do cristianismo e do judaísmo. Ela me disse que era possível, certamente, porque uma vontade de aprender significou uma vontade de se mudar. Mas é claro que no judaísmo deles, eles finalmente têm encontrado o que faz sentido para eles.

Betsalel

O Betsalel, o artista residente, fez Brasília a cidade dele em parte por causa do céu. Como professor da arquitetura e do planejamento urbano com uma propensão para espaços abertos, ele se mudou para a cidade pela abertura. A vida de Betsalel mudou durante uma viagem em 2005 para Salvador, onde, na casa da mãe dele, ele encontrou uma bíblia hebraica. Ele começou a ler. E ele continuou a ler. Ele leu tudo que ele conseguiu encontrar sobre o judaísmo. Foram as obras traduzidas de rabino Aryeh Kaplan de Nova Iorque que o catapultou na vida judaica.

Aconteceu de eu estar num carro com o Betsalel—quem estava vestindo uma kippah e tocando música israelense—no início da greve de caminhoneiros, uma crise nacional que cortou gasolina, combustível de avião e entregas de comida para muitos lugares do país por cerca de uma semana. No carro, nós passamos por uma longa fila de caminhões buzinando que estavam avançando em direção aos edifícios mais importantes do governo. Antes que eu pudesse perguntar sobre os caminhões, Betsalel desviou para uma rua lateral e disse, “vamos conversar sobre coisas mais altas”—especificamente, sobre a criação do mundo como está escrito na Torah. Com o Betsalel, tópicos de conversas mundanas como a política brasileira poderiam esperar.

Katy

Katy, de 58 anos, do Rio de Janeiro, tem ascendência africana no lado de mãe e ascendência indígena no lado de pai. Tomando-se depois de sua mãe bailarina, Katy fez ginástica por quatro décadas. Hoje em dia, os pés dela ainda mudam constantemente: através da cidade nos protestos políticos, ao redor do parque enquanto conversa com todos que ela encontra, na sinagoga enquanto ela limpa antes de Shabat.

Katy não foi criada numa religião particular, mas ela frequentou uma igreja cristã por algum tempo na vida adulta, até ela perceber que o que eles estavam pregando não alinhava bastante com o que ela estava lendo. Durante um período de três anos, ela perguntava e ela pesquisava. Então, ela se deparou com um vídeo na internet dum homem falando sobre o judaísmo. Como Katy o descreveu, foi como de repente ela deu um passo na realidade.

A transição pela vida como judia não foi fácil. No nível prático, ela teve que mudar a dieta radicalmente, desistindo a convivência e o prazer de comprar comida onde quer que estivesse disponível. No nível intelectual, ela teve que perceber que, como Katy disse, ela foi “enganada” pelas outras religiões cujas líderes insistiram que eles estavam ensinados a realidade absoluta.

No mesmo tempo, mudando para o judaísmo, parecia como chegando em casa nas maneiras grandes e pequenas. Quando ela aprendeu mais sobre a religião, ela descobriu que várias tradições na própria família dela tinham raízes judaicas, mesmo se nunca foram enquadrados nessa maneira. A mãe de Katy, por exemplo, sempre ensinou que o porco foi uma carne rançosa que não era para ser comida.

Para Katy, a comunidade emergente em Brasília está a base rochosa e o coração da prática judaica dela. Apesar ela ser a única membro da família biológica dela que pratica o judaísmo, ela fala sobre a comunidade da sinagoga como uma família. Quando eles aprendem inicialmente sobre o judaísmo, o grupo não sabia como dar um único passo para dentro da religião escolhida deles, então eles encontraram educadores que os ensinariam a andar. Desde então, cada passo pequeno tem sido junto.

Lynnclaire

Lynnclaire é uma estudante de estatísticas na universidade local e a mais velha de três irmãs. Ela aprendeu hebraico sozinha e agora serve como a chazzan da comunidade. Ela espera se mudar para Israel porque, ela me disse que ser judia e seguir leis judaicas seriam mais fáceis lá.

Lynnclaire tenta guardar o Shabat se abstendo de escrever e usar dispositivos eletrônicos. Na verdade, a observância do Shabat dela iniciou o estabelecimento da comunidade como organização localmente registrada, porque ela precisou de documentação institucional a fim de reprogramar os exames da universidade aos sábados. Enquanto ela detém uma quantidade surpreendente de conhecimento sobre tradições judaicas e interpretações rabínicas, é na prática do judaísmo que ela se sente mais viva. Um dia, enquanto refletindo sobre a diferença entre a vida agora e a vida antes de encontrar o judaísmo, ela comentou comigo, “eu sinto como se não tivesse vivido antes.”

 

Uma vez perguntei a Lynnclaire se ela pensava que a comunidade era diferente das outras comunidades judaicas no Brasil ou no mundo. Ela pensou por um momento, e depois, como qualquer judeu, respondeu com uma outra pergunta: “na verdade, todas as comunidades têm suas diferenças, né?”

A sabedoria de Lynnclaire ecoou o que antropólogos têm redescobertos desde o nascimento da disciplina quase um século atrás: muitas vezes, é nas nossas diferenças que encontramos semelhanças.

Pode-se ver a diferença em Aberto, um brasileiro que orgulhosamente declara que ele é tão velho quanto o estado de Israel, mas no momento em que ele ajuda a construir uma comunidade de pessoas que têm arrancado e replantado suas vidas religiosas, ele expõe um desejo reconhecível de se aterrar em um sentido de patrimônio.

Pode-se ver a diferença em Davison, um afro-brasileiro que lidera orações hebraicas, mas nas preocupações autoconscientes dele sobre se identificar como judaico enquanto aparecendo não ser judeu, ele reflete uma ansiedade humana familiar sobre a pertença.

Enquanto falava com cada membro da comunidade, eu fiquei impressionada com o quanto o riso decorou as histórias deles. Foi um riso que ecoou a alegria com que eles vivem suas vidas, a felicidade deliberada que eles trazem na prática do judaísmo e o prazer genuíno que tem vindo junto com isso. O riso deles foi o prefácio das histórias que eles estão apenas começando a contar.

Os nomes incluídos neste artigo são pseudônimos, a maioria dos quais foram escolhidos pelas pessoas reais cujas histórias são contadas aqui. Obrigada à maravilhosa comunidade que me hospedou, ao membro da diretoria de Kulanu Daneel Schaechter, e a uma Bolsa de Pesquisa de Campo do Tinker Foundation e do Instituto Latino Americano e Ibérico da Universidade do Novo México. A visita ao Brasil—e este artigo—não teria sido possível sem eles.